Já havia decidido isso no momento em que a maior revelação que poderia ter-me sido feita veio à tona. Mesmo assim demorei a efetivamente mover meu corpo para o que seria seu fim. Sim, estou a caminho do suicídio.
Sei, parece artificial quando falo sobre o assunto tão deliberadamente, mas acontece que é uma idéia tão antiga que repousa em minha mente, que talvez já tenha me acostumado a ela.
Estamos no mês de Junho, um inverno maldito de frio cortante e chuvas mal-vindas em uma bosta de cidade que mal me atrevo a proferir o nome. Acordo cedo como de costume às quatro da manhã, assisto às aulas que preciso assistir na escola, me despeço de meus amigos e parentes dissimulados, volto pra casa e torno a sair arrastando os pés de forma similar a meu ranger de dentes.
Já a caminho do anjo negro, levo comigo a mochila abarrotada com alguns objetos supérfluos os quais vejo necessidade de me despedir antes da derradeira partida. Supérfluos sim, porém mais valiosos que muitos indivíduos que deixarei para trás.
Sou pobre em expressar meus sentimentos, mesmo quando tento descrevê-los em palavras, por isso pareço um pouco sistemático e frio falando sobre futuro óbito, mas acredite em mim quando digo que tenho sérios pretextos e minha tristeza não cabe em mim de tão grande. Na verdade, mancho as páginas que escrevo com meu pesar liquefeito. Tremo a caneta a cada linha que precisa ser traçada para formar o veículo imperturbável que servirá de legado aos que por algum motivo possam sentir a falta de alguém tão desirmanado e fora do mundo real.
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O prédio era um dos maiores da cidade, o que não significava muita coisa. Peguei o elevador assim que pisei no hall de entrada, passando despercebido pelos seguranças ineptos da portaria de vidro.
Um. Pesar... Dois. Maldição... Três. desastre... Sete. Lamúria... Treze. Desespero...Vinte e dois. Lágrima...Vinte e três. calma. Pim, tocou a campainha que indicava minha chegada ao último andar do prédio. Um nível vazio, obscuro, mofado e inabitado, exatamente como me sentia havia tanto tempo.
Caminho pelos gêmeos corredores nuviosos, tendo plena consciência do trajeto que preciso fazer. Chego finalmente à escada que me leva para o terraço e levanto meus passos arrastados por toda sua extensão, até que o céu se abre sobre minha cabeça fervilhante.
Tirano azul, limpo. Chega a inspirar certa paz, ainda que momentânea. Á direita, a crista dum prédio um pouco mais alto, à esquerda o vislumbre das montanhas que se vistas mais à frente seriam flagradas cercando grande parte da cidade. Mas era à frente que encontrei o mais curioso.
Devia partilhar da mesma juventude que eu. Ligeiramente mais encorpado, cabelos esvoaçantes e pele alvíssima. Estava de pé no limite entre o chão do terraço e o baque de encontro à estrada vinte e três andares abaixo.
Outro suicida...
[continua]
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